Euclides das Neves
Que fiz eu para merecer isto?
Que fizemos nós para merecermos isto?
Será o novo coronavírus um sinal da ineficácia do Amor de Deus?
Será o novo coronavírus um sinal dos fins dos tempos?
Será o sofrimento, por vezes sem sentido, uma prova contra a existência de Deus?
Será que é o próprio Deus que no-lo envia?
As portas das Igreja fechadas e missas televisionadas são provas dos fins dos tempos?
Será a morte de milhares e milhões de pessoas no mundo, no meu país, na minha família, um sinal de que coisas piores estão por vir???
Sim, são estas perguntas que colocamos quando somos confrontados com a doença, a morte, catástrofes, crises e, neste caso, a covid-19. Desesperados, buscamos perceber o motivo que conduziu a isso. Contudo, não encontramos qualquer resposta para o facto de um Deus misericordioso poder permitir este sofrimento e angústia que atravessa o mundo, por exemplo. E, deste modo, a incerteza incomoda-nos, a angústia coloca-nos em pânico e até mesmo desinstala-nos do que há de mais nobre no íntimo dos nossos corações: o amor, a fé, a força, a esperança e a caridade.
Sei perfeitamente que uma reflexão do género não acaba com a dor/aflição. Todavia, sei que “a reflexão conduz, antes, à compreensão” da dor. E diante desta aflição que o mundo vive e das várias informações que invadem os ecrãs da televisão e redes sociais, é necessário sermos contingentes, é essencial cada um olhar para si, para as suas forças e lutas, e perceber o que realmente dá sentido às suas vidas. Aliás, “só quando eu compreendo a minha vida é que posso colocar-me diante de mim mesmo e resistir aos sofrimentos”, angústias, incertezas, pânico, indiferenças, etc.
Na lógica e na liberdade humana, Karl Rahner considera que as interrogações acima colocadas, sobre a dor, a aflição, perante a imagem do Deus misericordioso, podem ser uma resposta correta, mas não última. E o teólogo sublinha, veementemente, que “estamos proibidos de ficar satisfeitos com esta resposta”. Alias, continua o teólogo, “a incompreensibilidade do sofrimento é um fragmento da incompreensibilidade de Deus” e gerir e aceitar a incompreensibilidade dos sofrimentos, das aflições, das crises, das mortes, dos momentos difíceis é para ele, “a forma de aceitarmos o próprio Deus e de permitirmos que Deus exista”.
Não existe qualquer luz ditosa que ilumine a escuridão impenetrável do sofrimento, dos momentos difíceis como este, para além do próprio Deus. E a Ele só o encontramos quando aceitarmos, com todo o nosso amor, a incompreensibilidade do próprio Deus, sem a qual Deus não existiria (Karl Rahner).
Ao longo da história, os judeus sempre discutiram sobre a questão do sofrimento, males, momentos difíceis, doenças, crises, etc. O autor do Salmo 73 apresenta-nos uma experiência tipicamente humana. Somos tão propensos ao desânimo e ao desconsolo diante de momentos difíceis, mortes, doenças, crises, ao ponto de nos questionarmos sobre o amor de Deus, colocando em causa a Sua presença e misericórdia. Porém, o mesmo autor reconhece que Deus esteve sempre com ele, sempre o conduziu pelas mãos. O que evidencia que Deus também permanece junto de nós quando sofremos, até mesmo na hora da morte. Aliás, citando o Dr. Jacinto Farias, «o sofrimento em todas as suas formas é tão humano que se torna divino».
A experiência de Job também pode ajudar-nos neste tempo de quarentena: inclinámo-nos diante da infinita grandeza de Deus amor, misericordioso e omnipotente.
Os cristãos têm uma história própria, passam da cruz à Páscoa da Ressurreição. Sim, é isso que nos mantém vivos há mais de dois mil anos. Não percamos a nossa fé. Façamos, hoje, como os judeus «vinde, voltemos para o Senhor; Ele feriu-nos, Ele nos curará; Ele fez a ferida, Ele fará o penso» (Os 6,1).
Temos a consciência de que muitos dos nossos irmãos pelo mundo se sentem desamparados, outros não dispõem dos meios adotados para estar unidos à comunidade dos filhos de Deus que se juntam para rezar. Como é constrangedor… Ainda assim, não desliguemos a nossa vida à vida de Jesus. Só na própria vida de Jesus é que poderemos encontrar uma resposta para os momentos difíceis que vivemos.
Portanto, vamos olhar esta fase com os olhos de Cristo:
- a dedicação de Jesus aos pobres, que vemos hoje na dedicação dos profissionais da saúde no combate ao coronavírus;
- Jesus é no evangelho de S. Lucas médico dos doentes e daqueles que sofrem, e vemos isso hoje na agilidade dos nossos médicos e cientistas para encontrem vacinas e medicamentos;
- Ainda o evangelho de S. Lucas demonstra de uma forma muito especial como Jesus gostava de curar as pessoas de forma a ficarem tal como Deus as criou, com a sua dignidade e beleza originais, e hoje vemos o cuidado do Papa Francisco e da Igreja de forma a que não falte o pão espiritual, a confissão para as pessoas, para que estejam belos e com a dignidade originais de filhos e filhas de Deus.
O sofrimento presente, a aflição que vivemos em todo mundo é, também, um apelo para acabarmos com a escuridão deste mundo, com a ganância, com a corrupção, com estratégias bem planeadas para o proveito próprio em detrimento dos outros, sobretudo dos inocentes. Sim, um apelo para valor da vida, o valor da reconciliação e, acima de tudo, um apelo para olhar para o Céu e pedirmos que Deus não tarde em levar-nos para junto de Si.
E nesta enormidade de desassossegos, desprovidos de respostas imediatas, o teólogo Moltmann, observa que “o sofrimento é daquelas questões que percorre a humanidade de forma transversal, deixando um marco de inquietações sem resposta”. E diante da perturbação que a Covid-19 constitui para a humanidade, facilmente percebemos o que é a finitude e miséria humana. E desta radical verdade afirmara Walter Kasper, “falar do sofrimento é constatar que ele é o lugar onde a grandeza e a miséria se congregam e onde o homem, aprendendo a sua contingência, instabilidade e caducidade, toma consciência do seu destino absoluto”. Enfim, nada vale a prepotência humana quando somos visitados por uma calamidade. Choremos a nossa dor, a dor das nossas feridas e lamentemos as suas causas.
Sim, podemos gritar como Jesus o fez na cruz. Seguramente que o grito de Jesus na cruz já não é um grito de abandono, mas sim um grito de vitória sobre o poder dos demónios. O seu grito rasgou ao meio o véu do templo, pelo que o acesso a Deus se abre assim a todos – mesmo aos falhados, causadores de males, mesmo àqueles que tiram benefícios com esta pandemia que vivemos.
Por isso, os acontecimentos dos últimos tempos não são castigos de Deus para a humanidade; Deus é amor, ou melhor, “É senão amor”. Estas evidências fazem-nos perceber que Deus não pretende o sofrimento da humanidade; não tira daí nenhuma satisfação e nem tem ‘prazer’ em castigar-nos; também “não é Ele quem envia os males e os sofrimentos ao mundo, mas ainda assim, aceita-os porque, para Ele, a liberdade das pessoas é muito importante, já que é também a condição para o verdadeiro amor” (Anselm Grun).
Em última análise, não sabemos a razão pela qual nos aparece um vírus com poder de matar milhares e milhões de pessoas “do nada”. Contudo, ofereçamos este nosso sofrimento a Jesus; aliás, Ele mesmo se adianta em aceitar no seu corpo os nossos sofrimentos, tal como o fez na cruz. Mas porque Jesus aceitou os nossos sofrimentos na cruz se poderia facilmente os impedir? Pois, não podemos descobrir os mistérios de Jesus nem reconhecer os motivos que o levaram a não evitar o sofrimento, mas, em vez disso, a suportá-lo. Também não sabemos aquilo em que Deus pensou ao permitir uma pandemia como a Covid-19 (Coronavírus). Não conhecemos os pensamentos de Deus. São consoladoras as palavras de Paulo na carta aos romanos «oh que profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência é a de Deus! Como são insondáveis as suas decisões e impenetráveis os seus caminhos! Quem conheceu o pensamento do Senhor? Quem lhe serviu de conselheiro?» (Rm 11, 33-34).
Firmemos, entretanto, a nossa esperança “n’Aquele que guarda Israel”, n’Aquele que diariamente pega-nos pelos braços e leva para junto de Si. De contrário, não saberíamos calcular a desgraça deste vírus, a Covid-19. Enfim, esperemos pacientemente. Aliás, como é linda a nossa esperança do advento pelo Natal, da Quaresma pela Páscoa da Ressurreição. Sim, tenhamos esperança; Como dirá Moltmann, a “esperança ajuda-nos a olhar para o presente e para o futuro que não se baseia em raciocínios ou previsões de seguranças, mas que radica na fé e na pessoa de Cristo, deixando assim de ser uma utopia”. Nós não acreditamos no imaginário, acreditamos e esperamos por um Deus que, no mistério da Trindade, não se faz alheio aos problemas humanos e à humanidade no seu todo, mas que se faz presente, co-participa no sofrimento humano, fazendo-se amor e presença visível na história por meio da entrega pascal do seu Filho. Usemo-nos do sofrimento causado pelo coronavírus, para lembrarmos da expressão radical do Amor de Deus manifestado na Cruz. Falemos de Deus a partir da realidade desta aflição de quarentena.
Portanto, nesta altura de grande angústia, rezemos, unamos juntos os nossos corações ao de Cristo. Teilhard de Chardin espicaça-nos a descobrir Deus precisamente no mais inexprimível do sofrimento, angústia e dor. Estou seguro que vamos ultrapassar e combater a Covid-19, “porque a essência do cristão consiste em vencer a morte, a dor, a maldade, a indiferença, o egoísmo, o ódio, e descobrir Deus”. (Teilhard)