Introdução
A Igreja é familia de Deus e a que está em África definiu-se formalmente na Assembleia Especial do Sínodo para África em 1994, como ‘Igreja Família‘. Esta definição não foi ao ocaso ou fruto de ocasião. A África já vinha sentindo Igreja como Família, aliás a Igreja em Mocambique, na sua Primeira Assembleia Nacional de Pastoral celebrada em 1977, na Beira fez a opção de ser uma Igreja família vivida em pequenas comunidades animadas por ministérios. Certamente a formalização tenha sido encorajada pelos ventos do Concílio vaticano II que afirmou que «Assim a Igreja toda aparece como «um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo», uma expressão inspirada em S. Cipriano na sua obra De oratione dominica.
A família como lugar de protecção e segurança é sentido por todos. A preocupação da família de não perder nem se quer um dos seuss membros é do conhecimento de todos.
Nos últimos anos verifica-se uma realidade social, chamada de ‘mães solteiras’, fenónemo, em geral, assumido pela sociedade. Paradoxalmente, onde tem havido uma atitude de relativa resistência em relação a este fenómeno, é na Igreja, mormente nalgumas partes da África. Consta que há uma tendência a discriminar as meninas que são apelidadas de ‘mães solteiras’, uma atitude denunciada pelos padres sinodais do Sínodo sobre a Família na década 80 e condenada por João Paulo II na sua Exortação apostólica pós-sinodal Familiaris Consortio, mas que infelizmente tal atitude discriminatória persiste e pior ainda quando a mesma se verifica mais na família de Deus, a Igreja.
O núcleo I do questionário do Documento Preparatório do Sínodo 2023 é intitulado OS COMPANHEIROS DE VIAGEM, e procura responder à pergunta: Que pessoas ou grupos são, expressa ou efetivamente, deixados à margem? Em resposta, julgamos as ‘mães solteiras’ como uma parte daquelas pessoas que são deixadas à margem.
Esta reflexão procura contribuir neste processo sinodal em relação à atitude pastoral de algumas igrejas particulares a de deixar à margem as ‘mães solteiras’, e assim poder-se superar o paradoxo com o conceito de Igreja famíla.
Importa de antemão ressalvar um aspecto. Não é pretensão desta reflexão entrar na complexa matéria de o que se entende por família, por vários sectores da sociedade mormente na actualidade. Tomou-se como base a visão da Igreja que vem no Catecismo da Igreja Católica n. 2202, segundo a qual «Um homem e uma mulher, unidos em matrimónio, formam com os seus filhos uma família. Esta disposição precede todo e qualquer reconhecimento por parte da autoridade pública e impõe-se a ela. Deverá ser considerada como referência normal, em função da qual serão apreciadas as diversas formas de parentesco», nem as várias extratificações da mãe solteira, como é o caso da mãe solteira por falecimento do marido, a mãe solteira por divórcio, a mãe solteira por opção. A matéria de estudo é a mãe solteira, aquela que se envolveu com um homem, o qual não aceita a responsabilidade, por isso vista como pecadora.
I. Pressuposto
1. Igreja família
Igreja é familia de Deus. Este conceito é muito claro e é atestado nos documentos da Igreja. João Paulo II afirma, na sua exortação apostólica Familiaris Consortio, no número 15, o seguinte: «O matrimónio e a família dos cristãos edificam a Igreja: na família, de facto, a pessoa humana não só é gerada e progressivamente introduzida, mediante a educação, na comunidade humana, mas mediante a regeneração do baptismo e a educação na fé, é introduzida também na família de Deus, que é a Igreja».
Este conceito é particularmente sentido no continente africano a ponto de definir a Igreja em África como familia de Deus. O mesmo encontra-se formalizado no documento resultante da Assembleia Especial do Sinodo para África, evento que teve lugar em 1994, Ecclesia in Africa. Pois, no número 63 do documento publicado por João paulo II, o Papa que convocou o referido Sínodo para África, afirma-se o seguinte: «O Sínodo não se limitou a falar da inculturação, mas aplicou-a concretamente também, assumindo como ideia-chave para a evangelização da África, a noção de Igreja como Família de Deus. Nela reconheceram os Padres Sinodais uma expressão da natureza da Igreja, particularmente apropriada para a África. Com efeito, a imagem acentua a atenção pelo outro, a solidariedade, as calorosas relações de acolhimento, de diálogo e de mútua confiança».
É o conceito-chave no Documento de Kampala.
Pois para este importante documento da Igreja que está em África, «A Igreja-Família de Deus, formada por todos os Povos de diversas origens culturais, através da aceitação da Palavra pregada pelos Apóstolos, não é outra coisa senão a Igreja propriamente Apostólica. A expressão Família de Deus corresponde perfeitamente à visão fundamental da eclesiologia de comunhão do Concílio Vaticano II, com referência tanto aos temas da fraternidade como à grande oração de Jesus: “Que todos sejam um” (Jo 17, 21). Além do carácter apostólico da Igreja, os Padres Conciliares sublinham a dimensão escatológica da Igreja como Família de Deus, baseada na peregrinação para a plenitude do amor de Deus, salientando ao mesmo tempo o que constrói a unidade, isto é, o novo mandamento do amor» (DK 78).
O mesmo Documento produzido pelo SCEAM, na senda da Ecclesia in Africa desenvolve a ideia e as motivações afirmando, no seu número 81, que «A Igreja-Família de Deus em África implica tanto a comunhão com Deus como a comunhão com os irmãos e irmãs, Cristãos, todos chamados a uma comunhão de vida e de amor, de verdade e de acção, de fidelidade e de testemunho. A Igreja é uma família de pessoas unidas pela vida, pela aceitação mútua, pelo amor, pelo compromisso, pela celebração da fé, pelo perdão, pela alegria e pela partilha. É uma comunidade de construção de justiça, de paz, de solidariedade e de fraternidade vividas em palavras e obras. Entramos nesta comunhão da Igreja através do Baptismo precedido por um primeiro passo, o de escutar, aceitar a Palavra de Deus e apegar-se a Cristo, a Palavra eterna de Deus».
De acordo com o documento, Igreja é lugar de aceitação mútua, facto que acontece numa família, lugar de perdão, o que tem sido preocupação de uma família em caso de qualquer diferendo. De facto o espirito de aceitação e perdão são o sustento de qualquer família humana.
Prática pastoral de algumas igrejas particulares
Em muitos quadrantes do planeta sobretudo na África, a prática pastoral não se sintoniza com o conceito Igreja familia de Deus que foi sucintamente apresentado acima. A prática pastoral em algumas zonas prioriza mais o aspecto moral o que resvala em segregação e mesmo hostilização. Noutros casos fica a mercê do carácter do pastor, isto é, se for um pastor mais aberto e compassivo e capaz de influenciar o seu rebanho, a igreja acolhe uma ‘mãe solteira’ como parte da família, doutro modo a menina que concebeu e deu à luz sem um homem ao seu lado é simplesmente discriminada, portanto, perde por assim dizer o estatuto de membro da familia de Deus. O mais caricato é o facto de não haver preocupação de também responsabilizar o homem com que ela fez a criança, uma vez sabido que o acto sexual que resulta num ser vivo não é individual. Portanto, reedita-se aquela atitude dos que só prenderam a mulher apanhada em flagrante adultério absolvendo o companheiro do acto (Jo 8,8-11).
Sobre a penalização unilateral da mulher, João Paulo II é mais eloquente na sua Carta apostólica Mulieris dignitatem, onde ele deplora esta postura da sociedade. Pois no número 14 tem as seguintes palavras: «Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com ‘o seu pecado’, enquanto por detrás deste ‘seu’ pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo ‘pecado do outro’, antes, co-responsável do mesmo. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio: aparece como não responsável pelo ‘pecado do outro’! (…) Quantas vezes ela fica abandonada na sua maternidade, quando o homem, pai da criança, não quer aceitar a sua responsabilidade? E ao lado das numerosas ‘mães solteiras’ das nossas sociedades, é preciso tomar em consideração também todas aquelas que, muitas vezes, sofrendo diversas pressões, inclusive da parte do homem culpado, ‘se livram’ da criança antes do seu nascimento. São palavras carregadas de emoção, tipico de um pastor, que tem no coração a sorte das ovelhas, particularmente as mais injustiçadas.
Como foi referido na introdução, esta atitude discriminatória já foi denunciada no Sínodo sobre a Família, na década 80, e condenada por S. João Paulo II na Familiaris Consortio. Pois, o Papa deplora esta situação nos seguintes termos:«Além disso, ainda hoje, em grande parte da nossa sociedade, permanecem muitas formas de discriminação aviltante que ferem e ofendem gravemente algumas categorias particulares de mulheres, como, por exemplo, as esposas que não têm filhos, as viúvas, as separadas, as divorciadas, as mães-solteiras» (FC 24).
E a este respeito, deu orientaçoes muito claras, como se pode ler: «Estas e outras discriminações foram veementemente deploradas pelos Padres Sinodais. Solicito, pois, que se desenvolva uma acção pastoral específica mais vigorosa e incisiva, a fim de que sejam vencidas em definitivo, para se poder chegar à estima plena da imagem de Deus que esplandece em todos os seres humanos, sem nenhuma exclusão». É o propósito desta reflexão.
Era suposto que por estas alturas a situação tivesse tomado outro rumo ou mesmo em vias de superação. Mas, infelizmente o cenário persiste. Pois em algumas comunidades cristãs ou igrejas locais tem havido divergências no acompanhamento das jovens que tiveram o seu bebé fora da união matrimonial, cujo o homem não se identifica, as chamadas vulgarmente de ‘mães solteiras’. Há correntes que defendem o seu afastamento do grupo dos jovens a fim de estas não contagiarem as restantes jovens, a concepção por vias consideradas ilícitas, para além de priva-las de se aproximar da sagrada comunhão.
No número 63 da Ecclesia in Africa motiva-se porque a ideia de Igreja família de Deus é apropriada para África. De acordo com o documento «a imagem acentua a atenção pelo outro, a solidariedade, as calorosas relações de acolhimento, de diálogo e de mútua confiança». O acolhimento não combina com a discriminação, portanto, está-se perante um inquestionável paradoxo.
II. ALIANÇA ENTRE TEOLOGIA E PASTORAL, CHAVE PARA A SUPERAÇÃO DA MARGINALIZAÇÃO DAS ‘MÃES SOLTEIRAS’
Uma vez constatada a marginalização das ‘mães solteiras’ em algumas igreja particulares, o que constitui um paradoxo com o conceito de Igreja família, urge buscar luzes para a sua superação. Aliás, João Paulo II já manifestou, há alguns anos atrás, o desejo de ver o conceito de Igreja familia aprofundado. Nós entendemos aprofundamento não somente do ponto de vista especulativo mas também de impacto na vivência da fé. Ele desafiou mais os teólogos nessa tarefa, como se depreende nas seguintes palavras da Ecclesia in Africa 63 «Deseja-se vivamente que os teólogos elaborem a teologia da Igreja-Família com toda a riqueza que nesse conceito se encerra, mostrando a sua complementaridade com outras imagens da Igreja».
Fundamentos para a superação desse paradoxo não faltam. Vamos apresentar suncitamente alguns.
2.1. Âmbito social
Não há povo que não tenha sentido de família e na África este é muito forte, seja familia nuclear, clã e mesmo tribo. O Papa Paulo VI testemunha este facto. No seu documento intitulado Aficae Terrarum, 10 afirma: «Um elemento próprio da tradição africana ainda é o sentido de família. A este propósito, gostaríamos de realçar o valor moral e mesmo religioso do apego à família, comprovado também pelo vínculo com os antepassados, que encontra expressão em tantas e tão difundidas manifestações de culto (…). Para os africanos, a família torna-se assim o ambiente natural em que o homem nasce e atua, encontra a proteção e a segurança necessárias e, finalmente, tem sua continuidade para além da vida terrena, através da união com os ancestrais».
Esta ideia é retomada e desenvolvida na Ecclesia in Africa, 43 nos seguintes termos: « Na cultura e na tradição africana, o papel da família é considerado por todo o lado como fundamental. Aberto a este sentido da família, do amor e respeito pela vida, o africano ama os filhos, que são recebidos alegremente como um dom de Deus. «Os filhos e filhas de África amam a vida. (…)! Os povos da África respeitam a vida desde que é concebida até nascer. Alegram-se com esta vida. Rejeitam a ideia de que ela possa ser aniquilada, mesmo quando a isso quereriam induzi-los as chamadas “civilizações avançadas”. (…). Os Africanos demonstram respeito pela vida até ao seu termo natural, e reservam um lugar no seio da família para os anciãos e os parentes».
De acordo com este testemunho de Paulo VI e João Paulo II, família é lugar de protecção e segurança. Alías, mesmo para os Hebreus, povo eleito, a família assim o é. Quando foi da passagem do flagelo exterminador, as pessoas foram aconselhadas a reunir-se em familias nas casas e que assim seriam poupadas. Portanto, excluir alguém da família é expo-la a mais riscos. A falha na conduta não tem como correcção a discriminação. Procura-se ouvir e interpelar a pessoa até que se encontre modo de a recuperar. A persistência na conduta desaprovada não tem nenhuma pena capital que seria a exclusão, mas encontram-se mecanismos pedagógicos, que tem como nota predominante a paciência, até se ganhar o membro. É comum ouvir gente a dizer ‘o irmão não pesa’. Caso se revele incorrigível deixa-se e convive-se com ela, passando a ser sofrimento e cruz da família, de acordo com o provérbio dos Xirimas do Niassa, norte de Moçambique “Nino nakhuleya nlumi khaninatthapa” (Se se arranca um dente, a língua não exulta) = O infortúnio de um membro afecta os outros. Este provérbio xirima parece estar em sintomia com Paulo. Pois, na sua Primera Carta aos Coríntios, afirma «Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele» (1Cor 12,26)
Uma menina que concebe e dá à luz uma criança sem identificação do pai da criança sem dúvida é uma irrregularidade e mesmo desonra para a familia, mas não é excluida da família embora nos primeiros momentos do acontecimento possa ser alvo de um olhar de desaprovação social.
Outro dado muito importante revelado nestas palavras do Papa João Paulo II na Ecclesia in Africa é o amor e respeito da vida. Certamente seja devido a este facto que a menina assume a responsabilidade de levar até ao fim a sua gravidez mesmo face a incoerência do homem com que ela se envolveu. Ela balança entre proteger a vida e o risco de ser olhada com alguma desaprovação onde pesa mais, e opta par salvar a vida no lugar de optar pela sua interrupção. Julgo o mesmo exercício fez Maria quando recebeu o anúncio do anjo de conceber sem a intervenção de um homem. Ela deve ter pensado consigo entre cooperar com o Senhor e ser alvo de alguma desprovação por ter comprometido, aos olhos da sociedade, à sua virgindade onde pesava mais, e ela decidiu cooperar com o Senhor e não fazer caso daquilo que a gente poderia vir a pensar e dizer. Parece-me que este aspecto no juizo das ‘mães solteiras’ não é tomado em consideração ou se é tomado, não é dado o devido peso.
2.2 Atitude pastoral de Jesus
A referência de qualquer acção pastoral é Jesus Cristo, Pastor por excelência. Qual foi a atitude pastoral de Jesus para casos de pessoas com algum infortúnio na conduta?
Nunca foi de rejeição mas de acolhimento. Com isso não se pretende dizer era de aprovação. Porque ele sempre condenou o pecado, porém, não o pecador. O facto de ele ser tudo semelhnate a nós excepto no pecado, é uma clara desaprovação do pecado. A sua atitude nesta matéria é demonstrada no episódio da mulher apanhada em flagrante adultério (Jo 8, 8-11). Porque, de acordo com os estudiosos em matérias de Sagrada Escritura (A. POPPI, 1997, 611), «Jesus não aprova a conduta desordenada da mulher, nem também pretende afirmar que um magistrado deva ser sem pecado para julgar. Todavia, não é de acordo com a severidade dos acusadores, que com o pretexto da aplicação da Lei não prestavam atenção o bem da pessoa. Além disso eles não tinham tomado em cosideração a cumplicidade do homem, igualmente culpado. Jesus mesmo desaprovando o pecado da mulher, com uma atitude cheia de bondade faz recuperar à adúltera a sua dignidade e a endereça para a estrada da honestidade, ordenando-lhe de não pecar mais».
Nas suas pregações contra a atitude puritana e segregacionista de alguns sectores da sociedade do seu tempo, ele exortou mais para a pastoral de acolhimento e disse expressamente que há mais alegria por uma ovelha tresmalhada reencontrada do que as 99 seguras (Mt 18,10-14; Lc 15,1-7), aliás a situação de segurança não é defintiva para ninguém nem é um dado adquirido.
Atitude pastoral de Jesus para casos de infortúnio na conduta é de acolhimento, sem, no entanto, aprovar o mal. E encoraja a preocupação para com quem se encontra numa situação de irregularidade na sua caminhada de fé. Portanto, Jesus não só deixou uma mensagem expressamente clara, como também deu exemplo, do ponto de vista de referência pastoral para casos do gênero.
João Paulo II exprime isso melhor na Carta apostólica Mulieris Dignitatem,13 ao afirmar que «Em todo o ensinamento de Jesus, como também no seu comportamento, não se encontra nada que denote a discriminação, própria do seu tempo, da mulher. Ao contrário, as suas palavras e as suas obras exprimem sempre o respeito e a honra devidos à mulher». E acresenta, no mesmo número, que «Isso se torna ainda mais explícito no tocante àquelas mulheres que a opinião comum apontava com desprezo como pecadoras, pecadoras públicas e adúlteras».
2.3 Magistério
No Magistério não faltam indicações que podem servir de referência no que tangem à pastoral dessa categoria social, que tomando-as em consideração ajudariam para uma pastoral de acolhimento e na superação do paradoxo.
a) João Paulo II
Como se referiu acima, na Familiaris consortio João Paulo II condena discriminação de algumas categoria sociais, entre as quais a das ‘mães solteiras’. Este procedimento é paradoxal para Igreja familia de Deus e para a igreja em África, com sentido muito forte de familia, é um absurdo.
É neste contexto que João Paulo II afirma na Ecclesia in Africa, 48 «Durante a visita ao Malawi, eu mesmo tive ocasião de dizer: ‘Proponho-vos hoje um desafio — o desafio a rejeitardes um modo de viver que não corresponda às vossas melhores tradições locais e à vossa fé cristã (…). Hoje exorto-vos calorosamente a olhar para vós mesmos. Vede as riquezas das vossas tradições, olhai a fé que celebramos nesta Assembleia. Haveis de encontrar aqui a liberdade genuína; aqui encontrareis Cristo que vos guiará para a verdade’».
b) Bento XVI
Na sua visita apostólica a Cagliari, na Itália, em Setembro de 2008, Bento XVI revelou não só que tem no seu coração as ‘mães solteiras’ como também reconheceu a sua heroicidade. Pois, durante o Angelus, no Santuário de Nossa Senhora de Bonaria disse: «Pedimos a Maria, Mãe do Verbo encarnado e nossa Mãe, que proteja todas as mães terrenas: as que, juntamente com o marido, educam os filhos num contexto familiar harmonioso, e as que, por muitos motivos, se encontram sozinhas a enfrentar uma tarefa tão difícil».
c)A linha pastoral do Papa Francisco
A linha pastoral do Papa Francisco é muito clara e do conhecimento quase de todos. Pois a partir dos seus gestos e documentos fica claro que o Papa Francisco defende o acolhimento, a misericórdia e não a pastoral ‘da alfândega da fé’.
Para Francisco não existe ‘mãe solteira’, pelo facto de ‘mãe solteira’ não ser um estado civil, portanto, só existe mãe .
Francisco ficou muito conhecido pela sua doutrina ‘revolucionária’ da ‘Igreja em saída’. Uma Igreja em saída é aquela que atravessa a torrente do Cedron, como fez Jesus durante a sua paixão saindo do ambiente seguro, aceita o risco à busca do bem maior. É aquela que deixa as 99 ovelhas num ambiente relativamente seguro para atravessar rios, enfrentar o bosque e as serpentes à procura da ovelha em necessidade de conforto.
Nos seus escritos não deixa dúvidas que não apoia a segregação ou marginalização e pior ainda hostilização de qualquer que seja o tipo de ovelha, como se pode ler:
«No Sínodo, exortou-se a construir uma pastoral juvenil capaz de criar espaços inclusivos, onde haja lugar para todo o tipo de jovens e onde se manifeste, realmente, que somos uma Igreja com as portas abertas» (ChV 234). E no número 232 do mesmo documento, traz um ensinamento que pode servir de luz para esta matéria: «Assim, juntamente com as ervas daninhas que rejeitamos, arrancamos ou sufocamos milhares de rebentos que procuram crescer no meio das limitações». Para além de desencorajar uma pastoral que exclui, algumas camadas sociais, dá orientação do caminho a seguir, afirmando que «Em vez de «sufocá-los com um conjunto de regras que dão uma imagem redutora e moralista do cristianismo, somos chamados a investir na sua audácia, educando-os para assumir as suas responsabilidades, certos de que também o erro, o falimento e a crise são experiências que podem revigorar a sua humanidade» (ChV 233). Ele, a exemplo de Jesus, acolhe o pecador mas não tolera o pecado. É conhecido o seu lema da tolerância 0 para desvios morais particularmente para ministros.
Conclusão à guisa de contribuição
Antes de mais nada há que realçar que atitude pastoral que algumas comunidades cristãs tomam em relação às ‘mães solteiras’ não está alinhada com a visão telógica de Igreja família, não coaduna com a praxis de uma família e nem com a natureza do próprio Criador em relação às infidelidades do próprio homem, como testemunham as palavras da Oração Eucarística IV que passamos a citar: «E quando (o homem), por desobediência, pardeu a vossa amizade, não o abandonastes ao poder da morte, mas na vossa misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles que Vos procuram Vos encontrem. Repetidas vezes fizeste aliança com os homens e pelos profetas os formastes na esperança da salvação». Está patente a preocupação de Deus de socorrer e recuperar os infelizes para que todos encontrem a ele. Nunca fica indiferente por qualquer situação de desvio ou queda. Outro aspecto muito evidente é a sua paciência e persistência perante as falhas do gênero humano. É sintomático que Deus é sempre paciente com o homem, mas este último tem muita dificuldade em replicar a paciência do seu Criador.
Pastoralmente, para ultrapassar a marginalização de um grupo de pessoas, preocupação do Documento preparatório para o Sinodo sobre a Sinodalidade, que na visão desta reflexão, uma parte dessas pessoas são as ‘mães solteiras’, os pastores com o seu rebanho, deveriam ter presente a atitude da família que é de paciência, zelo e persistência para com os seus membros, atitude em prefeita sintonia com a do Criador como foi acenado. Foi a oração comovente de Jesus: ‘Não perdi nenhum de todos que me deste’ (Jo 17,12). Portanto, aponta-se a paciência divina como paradigma na pastoral das ‘mães solteiras’.
Esta atitude pastoral contribuiria para superação do paradoxo entre o conceito de Igreja família e a prática pastoral da marginalização das ‘mães solteiras. Neste processo, no nosso modo de ver, a sinergia entre teologia e pastoral ou a ‘sinodalidade’ entre os actores pastorais com o seu rebanho e os teólogos, cunhadores de conceitos teológicos e assessores dos decisores afigura-se passo crucial. De modo que as práticas pastorais sejam fundamentadas nos conceitos teológicos ou as mesmas sejam o reflexo da visão teológica. Assim como a filosofia é serva da teologia a teologia por sua vez, deveria ser serva da pastoral. Uma acção pastoral deveria ser iluminada pela teologia e não somente ditada pela visão moralista, porque deste modo temos uma visão monolítica da acção pastoral. Aliás, coloca-se uma pergunta: afinal para que serve a teologia se não pode ter impacto na prática pastoral, ela é somente um exercício do intelecto?
Dos dados sucintamente apresentados, pode-se afirmar que para a teologia está claro que a Igreja é família. O desafio é articulação entre teologia e pastoral. Há sensação que os teólogos estão fazendo a sua estrada e os actores na pastoral com uma parte do seu rebanho, também a sua estrada, uma espécie de paralelismo de caminhada de fé, no lugar de sinodalidade.
Sem dúvidas este empreendimento exige um esforço redobrado ou melhor dito uma renovação, como afirma e muito bem a Comissão Teológica Internacional (2018) no seu documento intitulado a Sinodalidade na vida e na missão da Igreja no paragráfo,104 que «Toda renovação da Igreja consiste essencialmente na acrescida fidelidade à sua vocação. No cumprimento da sua missão, a Igreja é, portanto, chamada a uma constante conversão, que é também uma “conversão pastoral e missionária”, a qual consiste em uma renovação de mentalidade, de atitudes, de práticas e de estruturas, para ser sempre mais fiel à sua vocação».
Por Pe Rafael Sapato, IMBISA
Referência bibliográfica
http://PAULO VI (1967), Carta apostólica Africae terrarum.
http://JOÃO PAULO II (1981), Exortação apostólica pós-sinodal Familiaris consortio.
http://______________ (1988), Carta apostólica Mulieris dignitatem
http://______________ (1995), Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Africa.
http://BENTO XVI (2008), Angelus. Átrio do Santuário de Nossa Senhora de Bonaria
http://Domingo, 7 de Setembro de 2008.
http://FRANCISCO (2019), Exortação apostólica pós-sinodal Christus vivit.
http://SCEAM (2019), Documento de Kampala.
http://Catecismo da Igreja Católica.
http://COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL (2018), A Sinodalidade na vida e missão da Igreja.
http://Documento preparatório do Sinodo 2023.
http://FRIZZI G. (2008), Murima ni Ewani Exirima-Biosofia e Biosfera Xirima: Antologia e Gramática Xirima. Maúa, Centro de Insvestigação Macua-Xirima.
http://POPPI A. (1997), I Quattro