Ainda que estejamos distantes das igrejas desertas, ouviremos da voz do sacerdote solitário a narrativa evangélica daquelas horas últimas de um Deus verdadeiramente irmão da humanidade.
Card. Gianfranco Ravasi | Prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura
Escrevo com embaraço estas linhas. Parecia-me, com efeito, ouvir a voz, rouca pelos gritos em demasia, de Job, que rejeitava as palavras dos amigos teólogos que o tinham vindo consolar, definindo-os como “infusões de malva”, incapazes de extinguir a sua dor lacerante. Ou, começando a escrever algumas linhas, ouvia ressoar ao ouvido a frase áspera de um outro sábio bíblico, Qohélet, que me advertia: “Todas as palavras estão gastas, e o homem não pode mais usá-las” (1,8).
Por fim, decidir rasgar o silêncio, como fizeram o papa e muitos outros pastores com palavras intensas, só para dizer que todos experimentamos na alma os mesmos estremecimentos dos muitos doentes com a boca colada a um ventilador. E sobretudo para estar ombro a ombro com a multidão de parentes, amigos, vizinhos paralisados pelo sofrimento dos seus amados, impossibilitados de dar uma só carícia nos seus rostos, ou inclusive de os acompanhar até ao fim com um rito de despedida.
Mas há uma outra razão que convida todos nós (por agora) sãos a não calar, e está precisamente ligada aos iminentes dias da Semana Santa, quando à nossa frente caminhar Cristo nas suas últimas horas terrenas. Imagino-o como no filme Andrei Rublëv, do grande realizador russo Andrei Tarkovski, enquanto avança tropeçando na neve, colorindo-a com o sangue das suas feridas, arrastando, exausto, a cruz, seguido pela multidão dos pobres agricultores e dos últimos daquelas terras.
O Deus cristão é diferente das divindades antigas como Júpiter, relegadas para o seu mundo olímpico dourado, apáticos em relação ao sofrimento humano. É, pelo contrário, um Deus que escolheu assumir o mesmo nosso bilhete de identidade, feito, sim, também de alegria, mas sobretudo de limite, de dor e de morte. Ainda que estejamos distantes das igrejas desertas, ouviremos da voz do sacerdote solitário a narrativa evangélica daquelas horas últimas de um Deus verdadeiramente irmão da humanidade. E veremos desfilar diante dos olhos, vividas nele, todas as desolações destes nossos dias.
Também Ele tem medo e horror da morte, cujo rosto severo de apresenta diante dele e de nós, ainda que o tivéssemos antes exorcizado e ignorado: «Pai, se é possível, passe de mim este cálice» envenenado. Também Ele experimenta o isolamento dos amigos, os discípulos que permanecem distantes, ou, como no caso de tantas pessoas sós doentes, o abandonam. Também Ele tem a carne ferida pelas torturas, e experimenta até a pior das solidões, o silêncio do Pai (“Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste?”).
Por fim, também Ele, por causa da crucificação, morre como muitos doentes de coronavírus, por asfixia, depois de ter emanado um respiro extremo. Tinha razão um teólogo mártir do nazismo, o alemão Dietrich Bonhoeffer, quando no seu diário na prisão escrevia: “Deus em Cristo não nos salva em virtude da sua omnipotência, mas pela força da sua impotência”. Sim porque naqueles momentos não se dobra sobre um qualquer doente para o curar, como tinha feito durante a sua vida terrena, mas torna-se Ele próprio sofredor e mortal. Não nos liberta do mal, mas está connosco no /em> mal físico e interior.
No entanto, mesmo quando é um cadáver sacudido aqui e ali, como acontece hoje às vítimas do vírus, Ele é sempre o Filho de Deus. É por isto que – experimentando na sua carne a nossa humanidade mísera, frágil e mortal – depôs nela para sempre uma semente de eternidade e de esperança destinada a desabrochar. É este o sentido da Páscoa, “a outra face da vida em relação àquela que está voltada para nós”, como dizia o poeta austríaco Rainer Maria Rilke.
Muitas outras coisas ensinou este mal a quem crê e também a quem não crê. Desvelou-nos, com efeito, a grandeza da ciência, mas também os seus limites; reescreveu a escala dos valores que não tem no seu vértice o dinheiro ou o poder; o estar em casa juntos, pais e filhos, jovens e idosos, repropôs cansaços e alegrias das relações não só virtuais; simplificou o supérfluo e ensinou-nos a essencialidade; tornou-nos irmãos e irmãs dos muitos Job, dando-nos o direito até de protestar com Deus, de erguer as nossas perguntas e lamentos a Ele.
Mas sobretudo revelou um valor supremo, o amor. Muitos dos leitores conhecem o romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, O amor nos tempos de cólera (1982), um título que poderia ser transcrito para o coronavírus. Um título que é verdade sobretudo nos muitos médicos, enfermeiros, voluntários, agentes vários, prontos a ir para além da lei do “amar o próximo como a si mesmos”, para seguir aquela extrema de Jesus: “Não há amor maior do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”.
Na Bíblia ressoa 365 vezes esta saudação divina: “Não ter medo!”. É quase o bom dia que Deus repete a cada aurora. Repete-o também nestes dias de terror. E para quem perdeu a fé, proporei a confissão do mesmo escritor García Márquez: “Desafortunadamente, Deus não tem um espaço na minha vida. Nutro a esperança, se existe, de ter eu um espaço na sua“.
Publicado In Cortile dei Gentili
Trad. Rui Jorge Martins | SNPC