Na experiência cristã mais autêntica, Deus é de casa. Fez-se homem, opta por habitar fora das paredes do templo, entra e habita na casa dos homens, almoça e ceia com eles, partilha com os homens os espaços da quotidianidade.
Pe. Ermes Ronchi | Pontifícia Faculdade de Teologia “Marianum”, Roma
O peregrino do absoluto não pode parar: «“Ide à cidade e virá ao vosso encontro um homem trazendo um cântaro de água. Segui-o, e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: O Mestre manda dizer: ‘Onde está a sala em que hei-de comer a Páscoa com os meus discípulos?’ Há-de mostrar-vos uma grande sala no andar de cima, mobilada e toda pronta. Fazei aí os preparativos”» (Mc 14, 13-15)
Será a última casa em que Jesus entra livremente. O último espaço acolhedor é esta habitação de um amigo, provavelmente rico, uma casa de dois pisos, bem arranjada, com espaço suficiente para Jesus e o grupo – não pequeno – daqueles que o tinham seguido desde a Galileia: os discípulos e muitas mulheres «que tinham subido com Ele a Jerusalém» (Mc 15, 41).
Aqui celebra a última ceia com os amigos, a primeira de muitas, incontáveis outras ceias. Sem hesitações, os primeiros cristãos fazem suas também as opções práticas de Jesus e escolhem o espaço acolhedor e quente de uma casa para se reunirem para partirem o pão em sua memória, e para escutarem os apóstolos.
É um facto relevante que a liturgia cristã nasça, por assim dizer, “em casa”, numa atmosfera familiar, íntima e afetiva. Apesar de continuarem a frequentar o templo e a sinagoga, os discípulos reencontram-se no contexto hospitaleiro de uma casa e da família que a habita: é na casa de Maria, mãe de João, de sobrenome Marcos, que se recolheram em oração quando aí chega, de noite, Pedro, milagrosamente libertado do cárcere (cf. At. 12, 12): entre as paredes de uma casa amiga, onde a vida é mais íntima e livre, criativa e geradora.
A primeira estrutura da comunidade de que temos memória é a assembleia em casa, ou “igreja doméstica”, que no mundo romano assumirá o nome de “domus ecclesia”, literalmente “casa da comunidade”. Esta experiência dos séculos incandescentes prolongar-se-á até envolver com a memória dos primeiros tempos as catedrais e os edifícios de culto, que tomarão de “domus” o nome de “duomo”, e de “ecclesiae” o nome de “igreja”, na origem não edifício, mas assembleia.
A primeira catedral não é aquela solene e monumental das cidades, mas é e permanece doméstica e familiar. E o primeiro altar do mundo é a mesa de casa. Durante os três primeiros séculos foram escolhidos edifícios bem mimetizados no tecido urbano, e na maior parte dos casos de dimensões modestas. Casas que do exterior pareciam habitações particulares normais, enquanto no interior compreendiam locais destinados ao Batismo, à Eucaristia, à preparação daqueles que iniciavam o caminho da fé.
Não se tratou, todavia, só de uma necessidade ou de um acaso. Na experiência cristã mais autêntica, Deus é de casa. Fez-se homem, opta por habitar fora das paredes do templo, entra e habita na casa dos homens, almoça e ceia com eles, partilha com os homens os espaços da quotidianidade. Vela quando eles dormem, está com as crianças quando brincam, acompanha os gestos e ofícios de cada dia, o trabalho, o estudo, os barulhos e os odores da cozinha.
Só um Deus que se fez homem pode escolher habitar fora das paredes do templo, na mesma casa do homem, na “profana” morada dos mortais. E será assim para sempre, porque está na natureza própria do cristianismo.
Por vezes, surpreende-me um sonho: que belo seria se voltassem as “domus ecclesiae”! Se voltassem em cada bairro, em cada avenida, em cada condomínio as igrejas domésticas e familiares, íntimas e quentes, onde os amigos se encontram para escutar a Palavra, interceder pelo mundo, partir o pão em memória dele. A primeira comunidade cristã radicou-se na quotidianidade expressiva da casa.
Dali pode repartir. Porque ali, onde a vida celebra a sua liturgia, respira o Senhor da vida.