INTRODUÇÃO
Certamente não procuramos com este pequeno texto apresentar um testemunho exaustivo do que foi a nossa experiência de vida ao lado do Pe. Manuel Cristóvão, como seus filhos e discípulos. Pretendemos, porém, olhar para alguns aspetos da sua vida – enquanto sacerdote e pároco da Paróquia de Santana – que, de certo modo, mais marcou o nosso itinerário cristão. E, para tornar mais fácil este simples e humilde trabalho, limitamos em tomar como o fio condutor uma das orações muito rezada por ele, sobretudo em contexto de refeição: «Senhor que nos alimentastes com os vossos dons, saciai-nos com a vossa misericórdia e dai-nos a ressurreição quando morrermos».
Dir-nos-ão: talvez uma frase seja insuficiente para rever toda a vida de um homem que tanto fez e deu ao seu povo. Talvez seja! Contudo, também é certo que, uma frase pode dizer tudo ou nada sobre alguém. Neste caso, temos por certo que muito se lhe diz respeito. Esta frase sugere-nos, antes de mais, o desejo profundo de um homem crente que não só agradece pelos dons recebidos, mas também se reconhece necessitado dos mesmos, ou seja, a oração sugere-nos a fé de um homem que acredita no amor providente de Deus, de quem recebe os dons materiais (alimentos) e espirituais (misericórdia e a ressurreição). Na oração vemos claramente uma progressão dos dons, sendo que o da ressurreição é mais excelente, o dom escatológico. No fundo, a oração é expressão do seu amor enquanto pastor para com o seu povo: o bem que o pastor deseja para si, deseja-o em primeiro lugar para aqueles que lhe estão confiado – um modo próprio e constante de amar o povo.
- Servo e dispensador dos dons do Senhor
Para quem não o conhecia, pensava que a sua ação pastoral se reduzia à celebração dos sacramentos. Mas, nunca foi. Pois, o Pe. Manuel – segundo o testemunho do Pe. Idalino Simões – «era um homem que viveu à frente do seu tempo e capaz de olhar para outros lados»[1]. O seu olhar de pastor cumulado de saber sociológico permitia-lhe ir além dos sacramentos. Por isso, na sua ação pastoral tinha muito em vista os mais necessitados: tanto aqueles que o procuravam como aqueles a quem ele procurava. No seu sentido de fé, próprio de pastor, quando se tratava de «pobre», não existia diferenças, não havia distâncias nem fronteiras, não havia raça nem religião. Soube ser e fazer-se próximo de todos, pois, o seu cuidado pastoral foi benéfico até para aqueles que não pertenciam o seu redil.
Apesar do seu vasto gabarito nos diversos saberes, queria trabalhar sobretudo com os mais pobres e simples, e não com os intelectuais. [2] Além disso, era um homem que sempre soube sair da sua comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisasse da luz do Evangelho.[3] Podemos, por isso, dizer que o Pe. Manuel era um homem que sabia lidar muito bem com as fronteiras: prova disso era o seu incansável esforço para estar junto das comunidades das roças, desde o primeiro momento da assunção da sua missão como pároco de Santana. Aliás, ele não só ia às periferias como trouxe as periferias até a cidade – através dos rapazes e raparigas ao seu cuidado, vindo de diversas roças do Distrito. Dom Manuel dos Santos, aquando do comunicado do seu falecimento, dizia: «entreguei-lhe a paróquia de Santana […] dedicou-se, de alma e coração, àquela gente […] Resumindo, deu-se até ao fim».[4] Também vimos e damos testemunho desta verdade.
- Um sedento da misericórdia divina
Nestes últimos 14 anos ao serviço da nossa Diocese, senão mesmo em todo o seu ministério, os sentimentos como ternura, compaixão, indulgência e perdão foram, de certa maneira, os mais visíveis em toda a sua ação pastoral, precisamente porque, para ele, só o amor e a misericórdia de Deus sacia verdadeiramente o homem. Mesmo quando muitas vezes ralhava com as suas ovelhas, por alguma razão que o levasse a ficar aborrecido – rápida e facilmente fazia valer seu desejo de saciedade pela misericórdia de Deus. Decerto, a vida cristã não faz sentido fora das sendas da misericórdia. Pois, o homem – consciente da suas fragilidades e pecados que o distancia de Deus – na sua busca incessante de Deus, sabe que só O pode alcançar pela experiência da misericórdia. Neste sentido, o Pe. Manuel, como peregrino do bem que foi no meio de nós e comprometido com a salvação de todos que o Senhor lhe confiou, ajudou-nos a compreender que o coração de Deus é misericórdia, ou seja, mostrou-nos que precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. Porque a misericórdia é fonte de alegria, serenidade e paz.[5]
Por isso, enquanto mestre e servo da misericórdia divina, tudo fazia por ver reconciliada cada alma que dele se aproximava, porque a «misericórdia é o caminho que que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado».[6] O caminho do céu constrói-se pelos caminhos de misericórdia. Alcança-se o céu aquele que primeiro alcança a misericórdia.
- Com os olhos postos na ressurreição, viveu morrendo
O desejo da ressurreição é aqui entendido como a ânsia de comer definitivamente a Páscoa com Cristo no seu reino eterno. Como vemos, trata-se de um desejo seu, mas que ele procurou incutir no coração do povo que serviu. Podemos perceber que havia na sua ação pastoral uma pedagogia da busca do além, onde o sentido escatológico era proposto como marca identitária de uma comunidade peregrina a caminho da Jerusalém celeste. Um desejo que, durante o seu ministério foi semeando com o testemunho vivo da sua ação pastoral e, sobretudo no anúncio da Palavra de Deus, pois, «a Palavra de Deus alarga e eleva ainda mais a nossa perspetiva, anunciando-nos que a colheita mais autêntica é a escatológica, a do último dia, do dia sem ocaso».[7]
No seu ministério e em toda a sua ação pastoral, procurou sempre impregnar a esperança no coração das suas ovelhas; procurava sempre que a voz da esperança fosse um ressoar constante no coração do provo, sobretudo nos jovens. Obviamente não se trata aqui de uma esperança vazia de sentido nem como a que o mundo nos apresenta (esperança que nos cansa), mas sim da esperança da ressurreição – não uma ressurreição triunfalista pensada a nossa maneira – porque «a ressurreição de Cristo anima as esperanças terrenas com a «grande esperança» da vida eterna e introduz, já no tempo presente, o germe da salvação (cf. Bento XVI, Spe salvi, nº 3; 7)».[8]
O desejo do céu, ou melhor, a sede do infinito que habitava o seu coração era verdadeiramente «o desejo do absolutamente Outro»[9]: este Outro Invisível que foi, de certo modo, tocando e preenchendo o visível e o invisível do seu ser, da sua história e do seu ministério. Víamos na sua vida os sentimentos que habitava o coração de S. Paulo quando dizia: «Mas a nossa cidade [pátria] está nos céus, de onde também nós esperamos ansiosamente como Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará o nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela força que lhe dá o poder de submeter a si todas as coisas» (Fl 3, 20-21). Todavia, tinha plena consciência de que tal pátria já lhe era dada a saborear neste mundo, na sua missão enquanto pastor e servo de Deus. Este desejo da pátria do além – da cidade eterna – era visível não somente em obras (no testemunho sua vida) mas também em palavras. Olhemos, por exemplo, para estas palavras de agradecimento[10] aos amigos que se lembraram dele no dia do seu aniversário: «Obrigado pela amizade que facilitou o meu caminho em direção ao “Mar infinito”, onde um dia espero chegar, não sozinho, mas na companhia de todos os meus irmãos».[11]
De facto, a incalculável sede do Infinito que extravasava do seu coração já o ia saciando enquanto vivia neste mundo, embora não na plenitude. Agora, porém, encontra-se saciada, porque já alcançou o seu eterno Desejado, o totalmente Infinito, o seu Criador. Agora vemos cumprida a esperança da ressurreição que tanto animou e consolou-o na sua missão pastoral. Agora já pode, junto do Desejado, velar seguramente por todos aqueles que um dia teve ao seu cuidado, todos com os quais um dia desejou ardentemente caminhar em direção ao «Mar infinito». Se, no dizer de Lévinas, não se pode estabelecer a relação com o Infinito por meio da experiência,[12] agora já pode fazê-la em ato. Aliás, em todo o seu ministério já víamos nele o toque e a manifestação do Infinito.
CONCLUSÃO
Enquanto viveu connosco, o Pe. Manuel soube ser e ensinou-nos a ser facilitadores do caminho uns dos outros em direção ao «Mar infinito». Nisto reside a radicalidade do amor com que viveu. E o amor só faz sentido quando levado ao extremo, ao ponto de dispormos a nossa própria vida. Decerto, com o nosso querido abade aprendemos que a vida tanto mais nos pertence quanto mais a colocarmos ao serviço dos irmãos. Por isso, quando o víamos empenhadamente a envidar esforços para que o «Prato quente» fosse sempre uma realidade de todos os dias para os idosos, era como se estivesse a dar-se a si próprio. Dar de comer significa também dar o que nós somos, ou seja, darmo-nos a nós mesmos, tal como fizera Jesus na Última Ceia, levando ao extremos o seu amor para com a humanidade.
Como bom sonhador que era, também nos ensinou a sonhar; ensinou-nos a olhar sempre para o alto para aproximarmo-nos do Pai, mas também a olhar para o lado, a fim de contemplar a cada irmão que de nós se aproxima, onde o rosto de Cristo também é visível, sobretudo nos mais indigentes.
Oxalá façamos valer tudo quanto nos ensinou e todo o bem que nos fez! Busquemos sempre, como ele, os caminhos da compaixão e de misericórdia. A alegria do Evangelho e da missão, a sabedoria e a humildade de coração e a esperança paixão pelo «Além» com que viveu seja para nós inspiração.
Magney Silveira
(Seminário dos Olivais)
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[1] – Testemunho do Padre Idalino Simões, da Diocese de Coimbra, in “Memórias que Contam” – Ecclesia, edição de 03.03.021, in https://agencia.ecclesia.pt/portal/memorias-que-contam-padre-manuel-pereira-cristovao-um-sacerdote-a-frente-do-seu-tempo-com-posicoes-radicais-c-video/
[2] – Cf. Padre Idalino Simões, da Diocese de Coimbra, in Memórias que Contam.
[3] – Cf. Francisco, Evangelii Gaudium, nº 21, in papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium_po.pdf (vatican.va)
[4] – D. Manuel dos Santos, comunicado do falecimento do Pe. Manual, in https://diocesestp.com/2020/01/03/faleceu-pe-manuel-pereira-cristovao/
[5] – Cf. Francisco, Misericordiae vultus, nº 2: Misericordiae Vultus – Bula de acusação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia (11 de abril de 2015) | Francisco (vatican.va)
[6] – Francisco, Misericordiae vultus, nº 2.
[7] – Mensagem do Papa Francisco para Quaresma de 2022, nº 1: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/lent/documents/20211111-messaggio-quaresima2022.html
[8] – Mensagem do Papa Francisco para Quaresma de 2022, nº 2.
[9] – Emmanuel Lévinas, Totalidade e Infinito, Trad. José Pinto Ribeiro (Lisboa: Edições 70, 3ª ed., 2019), 20.
[10] – Estas palavras surgem a propósito de um trecho do poema da canção do Pe. Zezinho:
«Dizem que todos os rios, correm pro mar infinito
Dizem que além do horizonte, tudo se faz mais bonito
Dizem que as águas da fonte sentem saudades do mar
E que borbulham e saltam e pulam e correm querendo chegar
Esta saudade que dizem que as coisas padecem
Debaixo do céu ai, ai, ai
É a saudade que eu sinto, eu confesso, eu não minto
O que sinto de Deus nosso Pai…».
[11] – Pe. Manuel Cristóvão (07.02.2017).
[12] – Cf. Lévinas, Totalidade e Infinito, 11.